
Fundamentos e direção ética
O Direito Imobiliário, no Brasil, dialoga com a função social da propriedade (CF/88, arts. 5º, XXIII, e 182–183) e com a política urbana do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001, que organiza instrumentos de ordenação, captura de mais-valias e inclusão (IPTU progressivo, outorga onerosa, transferência do direito de construir (TDC), operações urbanas consorciadas, EIV, ZEIS, usucapião especial urbano).
Em chave crítica e propositiva, Edésio Fernandes sustenta que o Estatuto inaugura uma nova ordem jurídico-urbanística, porém depende de implementação local efetiva; a “descrença” vem do hiato entre lei e prática, não do desenho normativo. Raquel Rolnik ressalta que a política urbana deve “promover a vida”, ampliando o direito à cidade; em diálogo teórico, Henri Lefebvre e David Harvey consolidam a noção de “direito à cidade” como direito coletivo de produzir e governar o espaço urbano.
Arcabouço urbanístico moderno (o que mais pesa na prática)
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). Diretrizes e instrumentos: plano diretor, outorga onerosa, TDC (inclusive por CEPAC em operações urbanas), direito de preempção, ZEIS e EIV. A lei admite emissão de CEPACs e define a aplicação vinculada dos recursos nas operações.
Direito de superfície. Previsto no CC (arts. 1.369–1.377) e no Estatuto (arts. 21–24): separa solo de edificações, facilitando PPPs habitacionais e preservação. A doutrina e enunciados confirmam a coexistência dos regimes.
Transferência do Direito de Construir (TDC). Instrumento para deslocar potencial construtivo (p.ex., de áreas de preservação para eixos adensáveis), com base em lei municipal e plano diretor; pode usar CEPACs em operações urbanas. Há guias técnicos e análises de tribunais/academia.
Mobilidade urbana e cidade compacta. A PNMU (Lei 12.587/2012) prioriza transporte público e modos ativos; documentos do Governo e da ONU-Habitat reforçam “cidade para todos”, redes compactas e integradas.
APP em áreas urbanas consolidadas. A Lei 14.285/2021 alterou o Código Florestal para permitir que municípios definam faixas não edificáveis nas margens d’água urbanas (tema sensível, com críticas quanto à proteção ambiental).
Registro de imóveis e modernização
SERP / ONR (Lei 14.382/2022). Institui o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, com interoperabilidade, atos digitais, padronização e facilitação de pesquisa e prenotação, mudança crucial para due diligence e desjudicialização.
Usucapião extrajudicial. Regulada pelo art. 216-A da LRP (Lei 6.015/1973) e Provimento CNJ 65/2017: processamento direto no registro, com participação obrigatória de advogado e notas técnicas da Corregedoria; acelerou a regularização dominial.
Incorporação, distratos e multipropriedade
Incorporação (Lei 4.591/1964) + Patrimônio de Afetação (Lei 10.931/2004). O regime de afetação aparta o empreendimento da massa do incorporador, protegendo adquirentes e crédito; a lei disciplina fiscalização e efeitos em caso de insolvência.
Lei do Distrato (13.786/2018). Positivou regras de retenção, prazos e penalidades em distratos de incorporação e parcelamento do solo; a jurisprudência recente do STJ e análises setoriais seguem calibrando a convivência com o CDC (Tema SATI/corretagem e limites de retenção).
Multipropriedade (Lei 13.777/2018, CC arts. 1.358-B a 1.358-U). Regime de condomínio por frações de tempo com registro próprio, muito aplicado em turismo e segundas residências.
Condomínio de lotes (CC art. 1.358-A, Lei 13.465/2017). Reconhecimento legal do modelo (unidades = lotes), com interfaces urbanísticas e registrais específicas. Há notas técnicas e estudos legislativos do Senado.
Parcelamento, regularização fundiária e habitação
Parcelamento do solo (Lei 6.766/1979). Determina requisitos para loteamento/desmembramento, proibições e responsabilidades. Guias técnicos atualizam a aplicação.
REURB (Lei 13.465/2017). Marco da regularização fundiária urbana, com modalidades REURB-S (interesse social) e REURB-E (específica); cartilhas oficiais orientam diagnóstico, etapas e titulação.
Minha Casa, Minha Vida (Lei 14.620/2023) + atualizações 2024–2025. O programa foi retomado/ajustado com novas faixas de renda e limites de valores; portarias em 2025 ampliaram faixas urbanas e teto de renda; reportagens recentes destacam ajustes no crédito habitacional.
Déficit habitacional. A FJP reportou cerca de 5,9–6,2 milhões de domicílios em 2022–2023, com queda em 2023; a principal componente vem do “ônus excessivo com aluguel”. (Útil para framing de políticas e advocacia estratégica).
Locações e garantias
Lei do Inquilinato (Lei 8.245/1991). Modalidades de garantia (caução, fiança, seguro-fiança e cessão fiduciária de quotas de fundo), regras de reajuste, renovatória e despejo. Built-to-suit positivado em 2012 (art. 54-A).
Assembleias condominiais digitais. Lei 14.309/2022 incluiu assembleias virtuais e sessões permanentes no CC, importante para governança de condomínios e compliance de formalidades.
LGPD em condomínios. Tratamento de dados de moradores/visitantes exige mapeamento, bases legais e políticas de privacidade; ANPD já possui regulamentos sobre incidentes e encarregados, e há guias práticos setoriais.
Tendências e impactos (2024–2025)
Digitalização registral (SERP/ONR) e usucapião extrajudicial seguem acelerando regularizações e “baixando custo de transação” no imobiliário.
Regramento de APPs urbanas: municípios ganham protagonismo normativo (com críticas acadêmicas sobre risco de flexibilização ambiental).
Saneamento (Lei 14.026/2020): metas de universalização até 2033 (99% água/90% esgoto), repercutindo em valor imobiliário e urbanização de assentamentos.
Política habitacional: ajustes no MCMV e no crédito (faixas/limites) influenciam demanda, precificação de terrenos e viabilidade de HIS.
Jurisprudência e pontos sensíveis em consultoria
Distratos: retenção entre 10% e 50% conforme caso/culpa e regras da Lei 13.786/2018, com CDC incidindo em conflitos (STJ vem calibrando).
Taxa SATI e corretagem: abusividade da SATI e critérios sobre repasse de corretagem em estandes; cuidado com decadência/prescrição conforme causa de pedir.
Multipropriedade: registro, convenção e uso são centrais para evitar litigiosidade (consumidor vs. civil).
Roteiro prático (compliance e estratégia para clientes)
Due diligence registral (SERP/ONR quando disponível), cadeia dominial, restrições urbanísticas/ambientais, análise de APP urbana.
Enquadramento urbanístico: compatibilidade com plano diretor, coeficientes, outorga onerosa, TDC/CEPAC (quando aplicável), EIV.
Estruturação jurídica: escolha do veículo (incorporação com afetação; parcelamento vs. condomínio de lotes; multipropriedade quando fizer sentido).
Regularização fundiária: REURB-S/E (cronograma, titulação, urbanização e conexões com HIS).
Licenciamento e mobilidade: cumprir PNMU, mitigação de tráfego, mobilidade ativa (alinhamento com “cidade compacta”).
Governança condominial e LGPD: assembleias digitais (Lei 14.309), política de privacidade e encarregado ANPD.
Contratual: cláusulas de distrato (parâmetros da Lei 13.786), publicidade e prevenção a greenwashing urbano (promessas vs. aprovação/plano).
Efeitos econômicos e repercussões sociais
Competitividade urbana melhora com infraestrutura, segurança jurídica registral e mobilidade (PNMU).
Inclusão habitacional depende de combinar MCMV, REURB e instrumentos do Estatuto da Cidade para reduzir o déficit (moradia precária, coabitação e ônus do aluguel).
Resiliência ambiental exige leitura cautelosa das APPs urbanas e integração com saneamento e drenagem (Lei 14.026/2020).
Bibliografia mínima comentada
Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001 (instrumentos de política urbana).
Lei 6.766/1979 (parcelamento do solo).
Lei 4.591/1964 (incorporações) + Lei 10.931/2004 (afetação).
Lei 13.465/2017 (REURB e condomínio de lotes).
Lei 13.786/2018 (distratos).
Lei 13.777/2018 (multipropriedade).
Lei 14.382/2022 (SERP/ONR).
Lei 8.245/1991 (locações) e Lei 12.744/2012 (built-to-suit).
Lei 14.309/2022 (assembleias virtuais).
Lei 14.026/2020 (marco do saneamento).
ONU-Habitat (Nova Agenda Urbana; diretrizes urbanas).
Edésio Fernandes (crítica e implementação do Estatuto). Raquel Rolnik (direito à cidade e política urbana). Henri Lefebvre/David Harvey (base teórica).





